Diante do anunciado crescimento do conservadorismo na próxima legislatura, a deputada federal Érika Kokay (PT-DF) é pessimista quanto à possibilidade de qualquer avanço no debate sobre uma reforma do sistema político no Congresso Nacional.

Deputada federal Érika Kokay (PT-DF). Foto: Divulgação
“A Constituição, ao falar em dignidade humana, está exigindo uma reforma política – que eu tenho convicção de que não será feita com este Parlamento, que é o ventríloquo dos interesses econômicos de uma elite”, diz Érika.
De acordo com a petista, os próximos quatro anos serão marcados por “muito enfrentamento com a bancada da bíblia, da bala e do boi”, como foi apelidada a união entre as bancadas evangélica, ruralista e da bala. “Nós temos, fundamentalmente, que fazer a construção de uma grande rede da sociedade civil e da organização popular, para que a gente possa superar esses desafios que estão postos para o próximo período”, defende a deputada. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Qual é a previsão para o início da próxima legislatura?
Penso que a discussão da Mesa Diretora vai tomar conta das discussões do Parlamento no retorno aos trabalhos. Finda esta discussão, nós vamos enfrentar esta mesma lógica das últimas semanas. Nós temos três projetos que ameaçam a democracia e as conquistas que a sociedade civil alcançou. São projetos que mostraram um aliança muito grande de determinados segmentos conservadores, que podem compor uma maioria extremamente perigosa, que funciona sob uma lógica fascista. Uma lógica de hierarquizar seres humanos, de retirar direitos e estabelecer apartheids. Eu digo que nós tivemos uma aliança dos fundamentalistas, que passam a ter uma formulação para além da concepção religiosa e começam a construir uma nitidez ideológica – o que eles chamam de ideologia de gênero – que é associada à família patriarcal e à manutenção da sociedade de classes.
Que segmentos conservadores são esses a que a senhora se refere?
Nós os chamamos de “BBB”: a bancada da bíblia, da bala e do boi. Por interesses pontuais e por essa construção ideológica, a bancada fundamentalista passou a se aliar à dita bancada da bala e aos ruralistas. Então, de um lado tem os ruralistas, que querem arrancar os indígenas e os quilombolas de um local de direitos e consolidar as casas grandes e senzalas, das quais a gente ainda não fez o luto. Eles se aliam àqueles que querem resolver os problemas de falta de segurança na sociedade com soluções como armamento da população e redução da maioridade penal, ou seja, com a destruição do Estado Democrático de Direito, ao mesmo tempo em que aumentam o espectro de proposições para o recrudescimento do Estado Penal, achando que tudo se resolve com a punição e não com a promoção de políticas públicas. Tanto a bancada ruralista quanto a bancada da bala e a bancada fundamentalista passam a ter uma formulação político-ideológica para um enfrentamento que pretende rasgar conquistas que, com muita dor, o povo brasileiro conseguiu desde a redemocratização do país.
Com a nova legislatura, então, a previsão é de que essa articulação se acentuará e passará a reger uma parte ainda maior dos enfrentamentos?
Nós já vivemos isso hoje. É uma aliança que se intensificará. Essa concepção fascista dialoga de uma forma muito intensa com a construção de uma sociedade onde as pessoas possam se armar e prescindir de qualquer mediação do Estado, concebido então em sua condição repressora e não como promotor de direitos. Ao mesmo tempo, dialoga com a bancada fundamentalista que precisa e quer estar nas comunidades indígenas para poder evangelizar. Para além disso, tem o segmento empresarial. Porque vai ser assim: enquanto não fizermos uma reforma política e não rompermos com a lógica do financiamento privado de campanha, o Congresso Nacional vai se distanciar cada vez mais da maioria da população e da defesa dos direitos das minorias, que também representam a consolidação da democracia. Ele vai representar menos o povo brasileiro, vai ser mais masculino, mais branco e mais identificado com as elites desse país. É o que ocorre com a diminuição da bancada dos trabalhadores e o crescimento da bancada empresarial. Vai ser assim se o Brasil não atender o clamor que está vindo das ruas e da própria democracia. A Constituição, ao falar em dignidade humana, está exigindo uma reforma política – que eu tenho convicção de que não será feita com este Parlamento, que é o ventríloquo dos interesses econômicos de uma elite.
Se o Congresso Nacional não terá condições de fazer uma reforma política na próxima legislatura, quais seriam os caminhos, então?
Nós temos, fundamentalmente, que fazer a construção de uma grande rede da sociedade civil e da organização popular, para que a gente possa superar esses desafios que estão postos para o próximo período. Vamos ter de fazer uma aliança entre os diversos segmentos que estão representados no parlamento e que não dialogaram de maneira suficiente nestes últimos dias, para enfrentar essas ameaças de retrocesso que estão colocadas.
Com o aumento do conservadorismo no Congresso, a senhora acredita que os movimentos sociais terão um papel mais central na próxima legislatura?
Sem dúvidas, mas a gente também teve uma coisa muito salutar que foi uma aliança dos segmentos da esquerda dos partidos mais vinculados aos movimentos populares no Congresso, a construção uma frente de resistência para atuar em todas essas discussões. Tanto no Estatuto da Família, como no debate do Estatuto do Desarmamento e particularmente na PEC 215.
Que partidos aderiram a essa “frente de resistência”?
Teve um segmento importante do PSB que se incorporou. O PV, o PSOL, o PCdoB, o PT. Nós tivemos muita unidade no debate da PEC 215, que significa o diálogo com os movimentos sociais. Porque não tem sentido… como é que nós tivemos tantas fileiras de policiais resistindo à entrada e à participação dos indígenas, que ali estavam lutando pela Constituição e pela sua própria existência? Nós tivemos expressões que não correspondem ao caráter essencialmente democrático e plural que deve ter o Parlamento.
A senhora acha que o tratamento dado pela Câmara aos indígenas foi diferente do que ocorreu dias antes nos protestos contra a mudança na meta do superávit primário?
Ficou extremamente visível a opção que a Câmara fez. Ao contrário de quando ocorreu aquela entrada de pessoas que apoiavam a oposição – DEM e PSDB – e que chegaram a inviabilizar o prosseguimento de uma sessão (leia mais) enquanto protestavam de forma nítida para impedir a discussão da flexibilização das metas fiscais. Chegaram, inclusive, a atentar contra a dignidade de parlamentares. Aquela reação não foi igual à que ocorreu com os indígenas e que levou à prisão de cinco lideranças com uma acusação de tentativa de homicídio que não se sustenta. Nós não vimos nenhum engravatado ou de salto alto indo à prisão por conta da interrupção daquela sessão. Fico pensando que um Parlamento que se protege desta forma dos indígenas, das mulheres, dos homossexuais e dos movimentos é um Parlamento que tem de se questionar se está representando a sociedade ou se representa um segmento da sociedade que não é majoritário.
Agora, diante desse cenário, em que aspectos a senhora acredita que o Congresso poderá avançar na próxima legislatura?
Penso que há uma dificuldade muito grande de se construir consensos, neste momento. O Estatuto da Família ou a tentativa de revogação do Estatuto do Desarmamento, por exemplo, são propostas que não possibilitam a incorporação das emendas necessárias à construção de consensos. É a mesma coisa da PEC 215. Não tem como você construir um aprimoramento ou qualquer forma de consenso. São propostas que precisam ser retiradas para que você possa estabelecer outras proposições, mas não vejo muita perspectiva nesse sentido. Acho que será um ano de muito embate, muitas polêmicas e muito enfrentamento com a bancada da bíblia, da bala e do boi. Primeiro, nós teremos que preservar nossos espaços, construídos para a valorização da democracia.
Que espaços são esses?
A Comissão de Direitos Humanos, por exemplo. A bancada feminina também. Já foi dito várias vezes que não basta ser mulher, é preciso que se faça política a partir da lógica da equidade de gênero e da defesa dos direitos das mulheres. É preciso cuidar para que esses instrumentos continuem mecanismos de libertação. Nós temos que impedir que essas comissões e esses espaços, construídos na lógica de garantir e promover direitos, sejam aprisionados ou apreendidos por uma concepção fascista de hierarquização dos seres humanos e de impedimento para que as pessoas possam viver sua própria humanidade.